Montag, September 14

meios a meio

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Acordou e lavou o rosto. Restaram algumas remelas nos cantos dos olhos. Escovou os dentes e logo fumou um cigarro. Acordou com o pé esquerdo, como sempre - era canhota. Ela voltou-se e procurou o algo que estava incomodando desde aquele primeiro piscar de olhos do dia. Talvez a impossibilidade de uma reflexão séria a atrapalhasse. Ficou irritada com essa falta de diálogo com ela. Não conseguia decifrar os códigos internos. Pensou nos externos, então. Precisava revirar, remexer algo. Pensou nas coisas que tinha feito no dia anterior, nas semanas anteriores, nos meses anteriores, nos anos anteriores... Nos desenhos mais ou menos feitos, nas leituras mais ou menos feitas, nas sensações mais ou menos vividas, nos desejos mais ou menos decifrados, nas perguntas mais ou menos formuladas, nas entregas mais ou menos, no olhar mais ou menos, no medo mais ou menos. Sentiu o corpo meio vazio e a carne meio marcada. Aquilo a deixava muito nervosa. Acendeu outro cigarro. Pensou na dor que vivia, a mesma dor de tantas outras pessoas ao redor, pulsando coragem e socorro. As suas 'conquistas' pouco significativas. A vontade de ser grande num cérebro tão pequeno. As veias saltadas de sangue e ódio. Percebeu que na verdade a sua existência exigia nada. Nome, rg, cpf, título de eleitor, carteira de motorista, passaporte de um fantasma. Vida de fantasma. Impossibilitada por ela mesma de falar de si, de significar-se, dar corpo. A sua existência nem era tão prazerosa assim. Talvez para as fofocas do dia, dos pesares dos outros, de ser cabide. Não percebia os instantes sérios e os instantes de se fazer séria. Era sempre aquele pedaço de carne com dois tocos enfiados chamados pernas e um sistema nervoso central que lhe permitia ver, ouvir, falar e sentir algumas coisas. Colocaram uma gralha dentro dela, mais ou menos sádica, mais ou menos masoquista, mais ou menos depressiva, revestida de um sorriso e gargalhadas que ela não conseguia controlar. Ria e queria parar de rir, a gralha não. Então ela fica soltando seu riso desesperado por aí, tentando compreender os porquês dessas suas pobrezas e mediocridades.


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1 Kommentar:

  1. Nossa, às vezes eu acordo assim. Ñ TÃO assim, esse texto amplia, lente de aumento. Mas às vezes eu sou tão pouco pra mim... Tô gostando muito de ler seu blog. Às vezes as coisas não nomeadas precisam se tornar concretas, tô reaprendendo isso agora. Redescobrindo Clarice também. Vc veio junto. Próxima. Te amo, Camis.
    Mirna

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