Montag, Mai 24

Para que a alma não desfaleça

Acordei por cutucões fortes no joelho. Abri os olhos aflita e vi um monstrinho indo embora, entre risadas e deboches. Instantes e ainda não acreditava muito no ocorrido. Uma espécie de arrepio subiu-me espinha pescoço nuca medo de estar dentro de algo na qual nem sei o nome, possuída por entes e vozes que luto para transpor.
Assim, de pronto povoada estava de dúvidas e sofreguidão quando abafei um grito dilacerante d'alma - e entenda-me, tal grito era-me importante, constituía nascimento e responsabilidade d'uma dor recém surgida, pulsante; abafá-la por receio de olhares adversos, julgamentos não pertencentes a mim só fez-me ser mais um pouco assassina de mim mesma: morte lenta não desejosa. 
E talvez devesse desculpar-me pelos enferrujos, misérias, atos e omissões; pela falta de forma e o modo que são construídas as relações e ausências. Talvez tudo deva feder um pouco, mas me é necessário esse movimento: tirar as carcaças devagar, cuidando para que a carne não desfaleça, atenta à alma presa ao corte reto, dando-lhe precisão. Jogar oxigênio à ferida, fazendo-a borbulhar e arder como pimenta e sal aos olhos. 

Vizinho de ferida.



"A vida de um homem é o instante onde o mundo, em vão, se ilumina. A pedra, a lua e o rosto do outro não seriam comemorados e celebrados se o breve trânsito de nossa aparição não contasse com a língua e com a palavra. Também os gestos ou a dança e a pintura igualmente celebram, mas é na palavra das línguas que o mundo deixa de ser mudo e pode tocar a aparição. Se o homem deixar de existir e apenas o lagarto ou outro animal grunhir para a lua, então ela será menos lua e algum deus criador que acaso persista em sua incansável persistência terá de reconhecer que sua “obra” não é mais devidamente celebrada e ele, junto de seu imenso narcisismo trabalhista, teria de se suicidar. Celebrar é estar exposto e atingido pelas coisas a ponto de, ao dizê-las, guardar-lhes a vibração, comemorá-las. Estar atingido também pela proximidade do rosto do outro é enxergá-lo a partir do aberto, não sendo o aberto mais do que o lugar de uma aparição intrinsecamente frágil, de uma aparição-desaparição. Mas o homem não gosta de estar exposto; ele é alérgico ao lugar. E, enquanto alérgico, converteu-se num animal blindado e, quando alguém aponta para o céu (como um personagem de Bernhard) e diz: “veja, ali está aberto, vejam, está aberto; a palavra a-ber-to está redigida no firmamento”, então, já não se percebe o que isso quer dizer, pois o homem blindado gosta de viver no fechado e de medir a palmo. O homem blindado expulsou a hospedagem: não está aberto à visitação dos afetos ou da palavra."

Juliano Pessanha, vale a pena.